Os programas sociais compõem uma iniciativa histórica dos entes públicos para assegurar a subsistência de pessoas em situação de miséria.
Economistas apontam, no entanto, que, atualmente, a diferença entre o valor pago por benefícios sociais e pelo mercado de trabalho desequilibra a economia brasileira.
E exemplificam a raiz desse desequilíbrio: se uma família pode receber mais por meio de benefícios, ela poderia se afastar da formalidade para se enquadrar nos parâmetros dos programas e garantir o pagamento.
José Ronaldo de Castro Souza Jr., professor de economia no Ibmec e economista-chefe da Leme Consultores, lembra que havia esse preocupação na época do lançamento do programa Bolsa Família, em 2003.
O economista aponta que, naquela época, estudos indicavam que o valor do pagamento era muito baixo para concorrer com os salários pagos, mas suficiente para garantir a subsistência dos beneficiados. O cenário hoje se inverteu.
“Com várias políticas sociais combinadas, o Bolsa Família, junto de outros benefícios, consegue pagar mais do que toda a família pode ganhar, então, começa a ficar comparável”, explica.
Dados do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome mostram que o Bolsa Família paga hoje, em média, R$ 678,46 por família. O valor representa uma alta de 253,8% em comparação com o que era pago antes da pandemia (R$ 187,91). Enquanto isso, os salários cresceram 2,63% no período.
“O lado bom é que o país está conseguindo ajudar essas pessoas que, de forma alternativa, estariam numa situação de penúria e miséria. O lado negativo é que revela um país que está doente”, afirma Paulo Tafner, presidente do Instituto de Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS).
Segundo o especialista, há dados mostrando que o atual valor do Bolsa Família tem retirado pessoas que poderiam estar no mercado de trabalho.
“O ajuste do valor tem que ser um ajuste muito fino. Se for muito baixo, ele não resolve o problema das famílias. Por outro lado, se for muito alto, ele pode gerar consequências no mercado de trabalho.”
Daniel Duque, pesquisador da área de Economia Aplicada do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), também vê uma relação de causa e consequência entre o aumento do valor pago em programas de transferência de renda e o mercado de trabalho.
“Parte da história do desemprego baixo se explica devido a uma oferta de trabalho menor, induzida por esse aumento dos programas sociais”, conclui.
Pelas regras do programa, o Bolsa Família não requer que todos os integrantes da família estejam desempregados. Mas que a renda por pessoa seja de até R$ 218, o que significa que aquele grupo de pessoas se encontra em situação de pobreza.
Atualmente, o programa social contempla 54,5 milhões de beneficiados — incluindo todos os integrantes das famílias que dependem do recurso. Em 2019, o contingente era de 40,8 milhões — alta de 33% no período.
O mercado de trabalho vem apresentando um desempenho forte nos últimos meses. Neste ano, o Brasil chegou a 102,5 milhões de pessoas ocupadas, segundo dados de agosto da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A população ocupada se divide em 58 milhões de brasileiros no setor privado, outros 31 milhões de trabalhadores por conta própria e empregadores, além de 12 milhões no setor público, mostram os dados do IBGE.
Além desses, há 66 milhões de brasileiros fora da força de trabalho e outros 26 milhões abaixo de 14 anos. Dos mais de 200 milhões de pessoas que compõem a população brasileira, cerca de 55 milhões recebem atualmente o Bolsa Família.
Porém, enquanto o contingente de beneficiários cresceu mais de 30% desde 2019, o número de pessoas ocupadas subiu apenas 7,3%, de 95,5 milhões naquele ano.
O movimento diminuiu a proporção entre os dois universos. Enquanto em 2019 haviam 2,3 trabalhadores para cada beneficiário, hoje há 1,9.
Para especialistas ouvidos pela CNN, o problema não está no benefício em si, pelo contrário; os economistas afirmam que os programas sociais são decisivos no apoio à população em situação de vulnerabilidade. O desafio, segundo eles, está na falta de “portas de saída” desse contingente, como a qualificação profissional.
“A gente precisa necessariamente que as pessoas trabalhando sejam em número maior do que as que dependem do Estado, justamente porque o Estado, para poder funcionar, poder trabalhar e dar recursos para quem não consegue trabalhar, ele precisa ter gente que produz, gera riqueza e arrecadação de impostos”, aponta José Ronaldo de Castro.
Tafner, do IMDS, ressalta que são necessárias mais medidas públicas, como educação infantil, acesso à saúde e acompanhamento das famílias para que os beneficiários dos programas sociais consigam buscar oportunidades.
“Não é reduzir porque a gente vai cortar dinheiro, por restrição fiscal. Mas reduzir porque as pessoas estão estruturalmente, ou estarão estruturalmente, saindo da pobreza. E isso é um sucesso. Quando isso acontecer será um sucesso para o país e o país estará menos doente”, ressalta.*
A pandemia da Covid-19 alterou o cenário dos benefícios sociais. O número de beneficiados vinha em trajetória descendente até março de 2020.
Com a pandemia, a parcela de pessoas necessitadas voltou a crescer. O salto mais expressivo, contudo, começou em 2022, quando o Congresso Nacional e o
então presidente Jair Bolsonaro (PL) transformaram o benefício em Auxílio Brasil.
Enquanto vigorou, o programa de transferência de renda saltou de 43 milhões de beneficiados para 55,7 milhões.
Também ao longo do período, apesar da alta de ocupados e queda de desocupados, o contingente de pessoas fora da força de trabalho aumentou ligeiramente.
Para José Márcio Camargo, economista-chefe da Genial Investimentos, um dos impactos do benefício sobre o mercado de trabalho é a diminuição de pessoas que se dispõem a buscar emprego, o que pode acabar gerando aumento de salários e pressão inflacionária.*
O especialista também chama a atenção para os efeitos deste cenário no potencial produtivo do Brasil.
“O trabalhador é fundamental para produzir bens e serviços. Se há uma oferta menor de trabalho na economia, você está diminuindo o potencial de crescimento”, diz.
José Ronaldo de Castro aponta que esse cenário pressiona a inflação do país por dois caminhos: o da a elevação dos gastos públicos e um de estímulo ao consumo. A relação com o primeiro é mais indireta.
“Tem um aumento de gastos muito grande, e o temor de que esse benefício social vá se acumulando cada vez mais e gerando um crescente volume de gastos públicos gera uma desconfiança e um aumento de risco e dificulta o controle da inflação”, aponta o economista-chefe da Leme Consultores.
Já o segundo caminho tem um efeito mais direto: quanto maior for a transferência de renda, maior é o estímulo ao consumo. O problema é que a demanda no país tem acelerado mais rapidamente do que nossa capacidade de produzir, nossa oferta. Um caminho para suprir essa oferta é a busca por importações.
Com esse cenário de risco fiscal, demanda elevada com oferta baixa e maiores importações, os preços tendem a subir no país. O resultado disso: uma política monetária mais restritiva. “Esse fenômeno acaba jogando a taxa de juros para um nível mais alto do que ela seria se não tivesse esse tipo de problema”, conclui José Ronaldo.
Para Paulo Tafner, o mais imediato é olhar para a questão fiscal.
“É um problema que deve ser combatido para se retomar a sustentabilidade, e que pode futuramente ajudar a reduzir a necessidade pelo Bolsa Família, para que a população possa viver do seu trabalho”, conclui o presidente do IMDS.
Ele defende, ainda, uma reforma no método de calcular o benefício, para que ele não aumente de modo a se tornar mais competitivo que o mercado de trabalho.
José Ronaldo reforça a necessidade de revisar as políticas públicas, para que a eficiência dos gastos possa ser otimizada, priorizando investimentos no país.
O economista reforça que a gestão deve ser pensada para que seja feita a transição socioeconômica dessas pessoas, reinserindo-as no mercado de trabalho, sem prejudicá-las.
Para isso, ele defende melhorias da educação básica — com verbas condicionadas a indicadores de qualidade — e a melhora da educação profissional — que teria de ser mais voltada às necessidades do mercado de trabalho.
“Para termos aumentos reais de salário, seria preciso que tivéssemos consistentes ganhos de produtividade. Não é o que estamos vendo. Temos graves problemas de qualidade na educação e na formação profissional dos jovens. Isso dificulta o aumento da produtividade e a consequente redução da dependência do Estado”, conclui.
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