Artes sacras, o ciclo do ouro, as marcas da escravidão. Circular pelas cidades de Mariana e Ouro Preto é como viajar no tempo. E pensar que tudo isso está interligado pelos mais de 1600 quilômetros da Estrada Real, que começou a ser construída no século XVII, pelos portugueses, para escoar a exploração do ouro mineiro até o porto de Paraty, no litoral do Rio de Janeiro.
E justamente um dos pontos da Estrada Real foi afetado por uma outra história: o rompimento da barragem do Fundão, em 2015. O bairro rural de Bento Rodrigues, completamente devastado pela lama de rejeitos, é uma das 183 localidades, entre cidades e distritos, que fazem parte do caminho histórico hoje considerado monumento nacional.
O rompimento da barragem do Fundão e a poluição do Rio Doce tornaram a tragédia em Mariana o maior desastre envolvendo barragens no mundo, nos últimos cem anos, de acordo com a consultoria Bowker Associates. Segundo a FGV, foram cerca de 2 milhões de pessoas atingidas.
“Nós temos que construir a região com participação de todos para que a gente possa deixar um legado forte”, diz Celso Cota (PSDB-MG), prefeito de Mariana. “Nós temos que olhar agora de que forma que a gente pode promover nossa sociedade utilizando toda a nossa história”, completa.
Mariana foi a primeira capital do estado de Minas Gerais, fundada em meados do século XVII. Está no centro da história e da cultura do nosso país. Hoje, nove anos após a lama ter coberto distritos inteiros da cidade, o desafio é resgatar esse patrimônio cultural, restabelecer a vida em comunidade e criar novas memórias.
Luciene Alves Rodrigues comemorou em abril seu primeiro ano como moradora de Novo Bento Rodrigues. Um cenário bem diferente do que se viu no antigo distrito, coberto pela lama. Luciene e sua família foram os primeiros a receberem as chaves da nova casa, e hoje já vê os antigos moradores de Bento Rodrigues chegando, e o senso de comunidade voltando.
“Quando tinha jogo todo mundo ia para o campo, as pessoas que gostavam. Agora aos poucos vai voltar, né? Daqui a um tempinho tudo vai voltar.. quase ao normal”, diz Luciene. “Igual não vai ser, né? Mas a gente vai ter que se acostumar porque ela vai ser esse aqui o lugar da comunidade”.
“No final de semana que o pessoal está interagindo mais aqui, porque já tem comércios, né? A gente tá se encontrando mais, agora tá tendo missa e o pessoal vem. Então tá bacana, dia de domingo fica cheio”, conclui.
Em sua nova versão, a escola de Novo Bento Rodrigues, símbolo da destruição do antigo distrito, já está cheia de alunos.
Já o bar de Darliza Azevedo, chamada de “Una”, opera como um restaurante. Aqui, os clientes são recebidos de sorriso aberto.
“Foram oito anos de luta nessa luta esperando. Aí agora, graças a Deus, saiu… e a gente tá podendo recomeçar!”, diz a cozinheira.
Para além da reconstrução material das casas atingidas, da reparação ambiental do Rio Doce, e da compensação pelos danos causados com o rompimento da barragem do Fundão… retomar o modo de vida é parte crucial do retorno à normalidade.
Na pracinha de Novo Bento, a “seresta ao luar”, organizada pela UNESCO, reúne os moradores para cantar e se divertir. É uma das iniciativas de entidades parceiras nos distritos reconstruídos.
Para Ricardo Woods, coordenador de reassentamento da Fundação Renova e que trabalhou na construção dos novos distritos, a participação dos moradores na escolha das casas faz parte desse senso de pertencimento.
“A participação da comunidade é o que é mais importante, né? As celebrações que a gente tem aqui hoje, muitas delas representam parte do que havia na origem, sim, mas há coisas novas também, né? Então o que a gente tem que estar atento é com a escuta realmente para o que a comunidade traz, quais os anseios, quais os desejos nesse novo local”, completa.
No novo distrito de Paracatu, a escola também foi reconstruída. Há também uma nova igreja, ainda que os moradores sigam utilizando a antiga. E os novos estabelecimentos também seguem em construção.
Romeu Geraldo é comerciante e presidente da associação de moradores do distrito. Para ele, restabelecer os vínculos é uma prioridade.
“Eu faço uma festa, faço uma confraternização para ver se a gente traz esse pessoal para perto de nós de novo. Senão fica cada um no seu canto. E isso a gente não quer”, comenta Romeu.
Após quase nove anos desde o rompimento da barragem do Fundão, 85% das obras de reassentamento já estão concluídas nas áreas atingidas, segundo a Fundação Renova.
Ao longo da bacia do Rio Doce, municípios e distritos também foram afetados no Espírito Santo. Por lá, as ações de reparação se concentraram na limpeza do leito e dos afluentes do rio, no tratamento do esgoto e na compensação de trabalhadores e comunidades que tiveram a sua atividade afetada de alguma maneira.
Uma dessas trabalhadoras é Terezinha Guês, conhecida como Tetê. Ela é artesã e líder da associação dos artesãos de Baixo Guandu, no estado capixaba. Como a lama de rejeitos impossibilitou o uso da argila nas margens do rio, ela e outros trabalhadores tiveram que adaptar o meio de vida e a matéria prima.
Ela foi a primeira pessoa atingida a receber uma indenização pelo sistema indenizatório simplificado, chamado de “novel”. A medida foi criada, após determinação da Justiça, para indenizar categorias com dificuldades de comprovação de danos, como lavadeiras, carroceiros, pescadores e artesãos, como Tetê. Dos mais de 37 bilhões de reais desembolsados nos trabalhos de reparação, 17 bilhões foram destinados às indenizações.
“Eu fui uma das primeiras pessoas a ser indenizada e fico muito feliz por isso. E me trouxe um alívio, uma felicidade muito grande quando eu recebi que tinha certeza que todos os outros artesãos iriam também receber”, diz Tetê.
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