O assentamento agroextrativista Antimary, em Boca do Acre (AM), é uma área destinada à reforma agrária que abriga porções preservadas da floresta amazônica. É ocupada por comunidades tradicionais que sobrevivem da extração de castanhas no Sul do Amazonas próximo da divisa com o Acre.
Alvo constante de grilagem, loteamentos irregulares, queimadas e conflitos por terra, a região teve quase 14 mil hectares desmatados até 2018, segundo o Ministério Público Federal (MPF).
Uma das responsáveis pela destruição da área, segundo a Justiça, é uma moradora de Monte Negro (RO). Ela teria desmatado um total equivalente a 135 campos de futebol no assentamento, que pertence à União.
Em 20 de setembro, a Justiça Federal no Amazonas condenou Nilma Félix a recuperar a área destruída e a pagar uma indenização milionária: R$ 2 mil por hectare desmatado como indenização por danos morais coletivos e R$ 2,1 milhões pelos danos que o desmatamento causou ao clima do planeta.
A cifra foi obtida por um cálculo que associa a derrubada de floresta com a emissão de carbono, um dos gases do efeito estufa, que agrava as mudanças climáticas.
Segundo a juíza Mara Elisa Andrade, que assina a decisão, o desmatamento “apresenta relação direta com as mudanças climáticas, pois sua prática leva à liberação de estoques de carbono que estavam armazenados na vegetação e, ao mesmo tempo, à anulação de mecanismos que promoviam a absorção de gás carbônico”.
A área de floresta derrubada, de 135 hectares, correspondeu a uma liberação de mais de 21 mil toneladas de carbono, de acordo com o processo. Com base na quantidade de gás emitido, foi possível precificar o dano ao clima para amparar o dever de indenização.
Intimada no processo, Félix não respondeu à acusação e foi condenada à revelia. Ainda cabe recurso da decisão. A CNN tentou contato com ela, mas não obteve resposta. O espaço segue aberto.
O preço da mudança climática
Medir o impacto que o dano ambiental causa às mudanças climáticas do planeta é um dever dos magistrados brasileiros desde 2021, quando o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instituiu a Política Nacional do Poder Judiciário para o Meio Ambiente.
A novidade é que agora os juízes podem calcular de forma padronizada o valor a ser imposto como indenização nas ações judiciais.
Um protocolo com parâmetros para essa quantificação foi aprovado pelo CNJ em 17 de setembro deste ano.
A regra dá aos juízes um método seguro para medir a quantidade de carbono emitida com queimadas ou derrubada de vegetação e fixa uma baliza mínima para converter emissões em dinheiro.
Trata-se de uma recomendação aos magistrados brasileiros. A norma adotou a referência do Fundo Amazônia para precificar a emissão: US$ 5 por tonelada de carbono emitido com desmatamento ou incêndio.
Esse valor é o mínimo a ser usado nas decisões. Há também uma metodologia padrão para levantar a quantidade de carbono relativa à área degradada.
O resultado dessa conta é o valor que o responsável pelo desmatamento deverá pagar como reparação ou indenização por danos climáticos nas ações ambientais.
O protocolo vai servir para nortear o trabalho dos juízes, com embasamento científico, conforme disse à CNN a juíza Lívia Cristina Marques Peres, auxiliar da presidência do CNJ e magistrada na Justiça Federal do Amapá.
“Vai dar um suporte para os juízes, proporcionando mais qualidade e efetividade na decisão”, afirmou.
Lacuna estatística
Apesar de o Brasil ter um histórico de décadas na chamada “litigância ambiental” – quando demandas relativas ao meio ambiente vão parar na Justiça –, o tema da reparação por danos climáticos ainda é recente no Judiciário.
O próprio CNJ não tem estimativas específicas para esse aspecto específico das ações ambientais.
Isso porque a indenização pelo dano climático é uma das dimensões da reparação ambiental total que é fixada em condenações.
O caso de um desmatamento ilegal, por exemplo, envolve também outras responsabilizações cumulativas, como multas, a obrigação de recuperar a área degradada, e o eventual pagamento por danos irreversíveis e por danos morais coletivos.
Na Justiça brasileira, estão pendentes de julgamento cerca de 20 mil processos de dano moral coletivo por dano ambiental e de indenização por dano ambiental.
Esse estoque de casos cresce anualmente: era de pouco mais de 13 mil em 2020.
Nos anos de 2023 e 2024 houve também aumento nos casos novos. Entraram no Judiciário mais de 7 mil no ano passado. Até julho deste ano, foram outros 5 mil.
Mapa das ações
Iniciativas acadêmicas tentam mapear o universo de processos que tratam da responsabilidade civil por dano ambiental-climático.
Segundo o grupo de pesquisa Direito, Ambiente e Justiça no Antropoceno (Juma), da PUC-Rio, são 90 ações ambientais que discutem a questão climática no Brasil.
Levantamento com dados de vão até março deste ano encontrou 24 ocorrências de casos sobre a responsabilização por dano ambiental-climático. Desses, 11 mencionam diretamente nos pedidos a necessidade de responsabilização por esse impacto na mudança do clima.
A Amazônia é o bioma que mais aparece nas ações (14 casos, do total de 24).
Conforme o levantamento, Pará e Amazonas são os estados com mais ações (5 e 4, respectivamente). A soma do número de casos ajuizados nos estados da Amazônia Legal é mais da metade dos casos sobre responsabilidade civil por dano ambiental-climático (são 16 de 24 casos).
Órgãos da administração pública, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), representados pela Advocacia-Geral da União (AGU), lideram o ajuizamento das demandas (14 ações).
Pela metodologia adotada, o MPF e os Ministérios Públicos nos estados têm sete ações.
O grupo de pesquisa optou por registrar como uma única ação um conjunto de 22 processos ajuizados pelo MPF contra diferentes réus, mas relativos ao mesmo inquérito policial e à mesma área: justamente o Projeto de Assentamento Agroextrativista Antimary, cuja condenação de uma das rés abriu esta reportagem.
Mais atores na Justiça
Coordenadora-geral do Juma e do levantamento sobre a litigância climática, Danielle Moreira disse à CNN que é possível observar um maior protagonismo da sociedade civil organizada no ajuizamento dessas ações.
“Os MPs sempre tiveram um protagonismo na litigância ambiental tradicional, porque a sociedade organizada não tinha tanta capacidade instalada e recursos, para ajuizar as ações”, afirmou.
“Agora, com a emergência climática, e com o terceiro setor recebendo recursos e estrutura, há essa organização. As ONGs têm legitimidade de ajuizar ação civil pública desde 1985”.
Segundo a especialista, que é doutora e mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), o destaque de órgãos da administração pública no ajuizamento das ações se dá por movimentos institucionais como o da própria AGU, de levar essa discussão adiante.
Em 16 de setembro, por exemplo, o órgão apresentou a primeira ação por dano climático em unidades de conservação representando o ICMBio.
O pedido de reparação por desmatamento, queimadas, aplicação de herbicidas, introdução de espécies exóticas e criação de gado dentro da Floresta Nacional do Jamanxim, no Pará, foi calculada pela AGU em R$ 635 milhões.
Para Moreira, o Judiciário tem um papel “absolutamente fundamental” no tema, já que as questões não têm sido resolvidas fora da Justiça.
“O movimento de litigância ambiental global se faz porque governos, instituições de fora do sistema de Justiça, não têm sido capazes de resolver e das respostas eficazes para a questão climática. Então a saída acaba sendo acionar a Justiça”, declarou.
Efeito pedagógico
Procuradores e promotores também têm buscado dados mais robustos e seguros para apresentar demandas sobre o dano às mudanças climáticas, apostando também em um efeito pedagógico das condenações.
Nota técnica lançada no começo de setembro pela Associação Brasileira de Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa) e pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) traz diretrizes para o cálculo das emissões de carbono e precificação do dano.
Segundo Alexandre Gaio, presidente da associação e promotor de Justiça no Paraná (MP-PR), a padronização dos critérios contribui para que os membros do Ministério Público passem a contemplar a reparação dos danos ao sistema climático nas ações e acordos extrajudiciais, além de proporcionar um viés “pedagógico”.
“Traz um efeito inibidor de novos danos ambientais na medida em que as responsabilizações dos infratores ocorrerão de modo mais efetivo. É preciso impedir que aqueles que desmatam ilegalmente tenham qualquer vantagem econômica”, disse à CNN.
Para ele, a definição de um valor financeiro mínimo para quantificar a emissão de carbono é um “primeiro passo importante”.
“No entanto, isso não deve isentar o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima no desenvolvimento de um novo referencial oficial para a precificação do carbono, com base em estudos interdisciplinares, e que contemplem de um modo mais amplo os danos ecológicos, sociais e intergeracionais causados pelas emissões de CO2”.
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